16 de outubro de 2008

À noite, todas as pretinhas são Pitanga

Um dos porteiros do meu prédio pode ser descrito como a quintessência da "figuraça". O cidadão já passou dos sessentinha e não escuta quase nada - mas insiste em trabalhar o turno da noite no escuro ("para aguçar a visão noturna", ele justifica, convenientemente sem lembrar a tarde em que precisei chutar o portão para entrar em casa).

Mês passado veio me perguntar baixinho se o dono do apartamento em que moramos é mesmo meu pai. Depois de quase dois anos vendo o senhorio visitar os inquilinos praticamente todos os dias (e em horários pouquíssimo ortodoxos, como seis da manhã e onze e meia da noite), não raro passando pela portaria com a locatária pendurada em seu pescoço, ele finalmente se deu conta da incrível semelhança de nossos sobrenomes nas correspondências (metade das minhas cartas vai para a residência do meu genitor, metade das dele chega na minha). Enfim.

A melhor de todas foi ontem. Para variar, precisei tocar a campainha algumas vezes até que ele saísse do minúsculo banheiro incrustado na portaria. Arrumando as calças, o indivíduo olhou para mim por um segundo e, ostentando um sorriso semi-banguelo, soltou a pérola: "Para mim a senhora é a cara da Camila Pitanga."

Cansada e com sono, dei uma risada com 90% de falsidade e retruquei o famoso "que é isso, só reencarnando algumas vezes para chegar lá". Continuei andando, enquanto ele insistia que às vezes chegava até a pensar que era a própria Pitanga tocando a cigarra - ignorando o fato de que dificilmente a global andaria de tênis e calça jeans folgada, descabelada e sem maquiagem, levando uma sacola de supermercado numa mão e uma pasta de clipping na outra, tentando encontrar as chaves de casa em uma bolsa comprada a R$ 20 perto da rua das Calçadas.

Insisti que, fora a cor marrom da pele de ambas e talvez um sinal perto do nariz, qualquer semelhança seria meramente fruto de drogas pesadas. Parecendo desistir do assunto, ele voltou sua atenção para dentro da portaria novamente, enquanto eu alcançava em paz a metade do caminho até as escadarias. Só na hora em que eu começava a escalar os primeiros degraus ele voltou de seu devaneio, a tempo de me fazer ouvir o grito:

"Mesmo assim eu ainda acho!"

Um comentário:

Mayra disse...

Pô, mais eu adoraria ouvir "você é a cara da Bonitona Sei-lá-qual", mesmo sabendo que o único remédio pra isso seria doar óculos ao portador de tal miopia... =)
E se o mundo não ajuda, pitangue-se!