2 de setembro de 2009

Historinha da vida real

O rio visto do alto

Ela se despediu do motorista e desceu, apressada, do veículo branco. No mesmo momento girou sobre os calcanhares e deu alguns passos em direção à rua que a separava de seu destino - o edifício de 16 andares onde realizaria o evento no dia seguinte. No meio do movimento, no entanto, voltou à posição inicial e se forçou a observar a paisagem. Eram três e pouca de uma tarde no início de setembro, e o sol se refletia sobre o rio, realçando as pontes que o entrecortavam delicadamente.

Se deu ao luxo de perder dez segundos observando a água que, inexoravelmente, corria para seu destino.

O rio sempre estivera lá. Porque só agora se dera conta de como era belo? Porque era tão difícil parar para observar a vida acontecendo?

Trabalhava em uma sala sem janelas - só um vidro a separando de um corredor. Não tinha noção de quando era dia ou noite e mesmo assim, num momento como aquele, enquanto circulava por um dos cartões-postais da cidade, teve literalmente que se forçar para *sentir* o que via. O redemoinho de preocupações, queixas, responsabilidades e contas a pagar estava consumindo cada célula do seu ser. *Por isso* não percebera o rio naquela tarde. Raramente percebia.

Ela era a cidadã padrão. Sempre parava para ouvir os queixumes do pai ou da mãe. Ou dos irmãos. Ou dos amigos. Tentava dar atenção ao problema de todos, e acabava absorvendo as preocupações alheias por tabela. Alguém lhe disse um dia que se o cachorro do amigo de um vizinho adoecesse, certamente ela passaria a noite em claro. A pessoa estava coberta de razão.

Naquele dia em especial, tinha praticamente envelhecido uma década. Acordara cedo, fizera alguns exames de saúde, chegara ao trabalho e descobrira um cliente insatisfeito aos berros. A culpa não era dela, mas a esta altura já estava muito perto de um colapso nervoso até para argumentar. Não gostava ser acusada de incompetência. Foi na correria para resolver a situação que se viu diante do rio.

Balançando a cabeça para afastar os pensamentos, respirou fundo, endireitou os ombros e atravessou a rua. Precisava mudar.

A primeira tentativa de parecer mais segura não foi muito eficaz. Chegando na portaria do prédio, estava tão tomada pelo torvelinho de preocupações que começou a gaguejar no segundo em que abriu a boca. *Detestava* gaguejar. Não era de sua personalidade. Respirou fundo e tentou se controlar, mas o medo de encontrar a sala de eventos aos pedaços era maior que sua força de vontade. A pessoa que reservara o espaço fizera questão de frisar um ligeiro estado de abandono no local. Um grande problema, com certeza. Fez uma prece ao entrar no elevador - não pela sala, mas para não ficar presa naquele cubículo. Também *detestava* elevadores.

Chegando ao último andar, teve a grata surpresa de encontrar um espaço encantador, com janelas de vidro revelando o verde do mar e o brilho do sol no rio lá embaixo. Sentiu as pernas fraquejarem de alívio e gratidão, e quase se ajoelhou diante do rapaz da manutenção pelo excelente estado do local. Quase. Mas teve certeza que o rapaz a achou uma maluca completa.

Desceu com um sorriso no rosto e caminhou de volta ao trabalho - à sala sem janelas, aos telefones tocando ininterruptamente, à lista quilométrica de pendências.

Mas desta vez, fez questão de prestar atenção em todos os detalhes do caminho.

Talvez a coisa desse certo.

Um comentário:

BETA FERNANDES disse...

É incrivel como não damos atenção as coisas boas e belas da vida. Eu me culpo tanto por isso, Amiga.
Seguir enlouquecidamente nesta vida é ruim demais. E mesmo sabendo disso eu ainda me vejo tensa com tantas coisas bestas. Tem jeito não. Um dia a gente aprende e amadurece... nem que seja na porrada. Um dia vai.