13 de dezembro de 2009

I'm down

Eh como se meus joelhos tivessem magicamente se transformado em borracha. Se o mundo um dia quis me ver no chao, essa eh a ocasiao perfeita: bem em frente a esta porta branca.

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Minha memoria nunca foi um ponto pelo qual me destacasse. Nao que eu seja intelectualmente prejudicada -- aa parte uma timidez compulsiva que me fez passar o primeiro grau praticamente despercebida, sempre fui considerada dotada; boa escritora, perceptiva, com um amplo vocabulario. Mas a memoria eh um capitulo aa parte. Se nao fosse uma agenda surrada que mora no fundo da bolsa, em meio a outras bugingangas indispensaveis como pinca e remedio para as mais diversas enfermidades, as coisas importantes da vida nao seriam mais que uma vaga sensacao no fundo de minha mente.

Mas esta porta... Suponho que apesar da amnesia patologica, esta porta vai habitar meus sonhos -- e pesadelos -- pelo resto de minha existencia. Branca, com tres linhas horizontais exibindo numa letra aquadradada as palavras que minha alma sempre se recusou a aceitar: UTI. ACESSO EXCLUSIVO A PACIENTES.

La dentro, mal acomodado em um leito pequeno e conectado a um sem numero de tubos e aparelhos, meu melhor amigo -- o heroi de minha tola historia de vida, uma das poucas razoes para eu me levantar todos os dias e fingir que pertenco a este mundo.

Meu pai.

Desde o segundo em que descobri que ele tinha cancer -- obviamente meu senso anormal de responsabilidade, que me leva a agir como se fosse a mae de meus pais e nao o contrario, me brindou com a terrivel descoberta em primeira mao -- tenho passado por uma serie de fases que dariam a um psicanalista uma bela tese de doutorado.


Primeiro veio a dor incapacitante.


Era impossivel parar de chorar. Comer. Dormir. Respirar. Como se alguem bastante sadico tivesse enfiado a mao embaixo de minhas costelas e arrancado o que pudesse agarrar: coracao, pulmoes. O que ficou foi so um buraco vazio que latejava constantemente, inflamado e sangrando. Esse periodo durou praticamente um mes, durante o qual nada parecia ter relevancia suficiente para me trazer de volta do mundo dos semi-mortos.


Depois veio a compulsao. Entreguei minha alma aa leitura mais extensa que pude encontrar: a saga Crepusculo, que deve somar mais de duas mil paginas de um texto intrigantemente reconfortante. Ainda agora, quando nao eh estritamente necessario estar verdadeiramente presente em uma situacao, tenho me agarrado aos ja surrados livros como a uma boia -- evitando assim afundar nas aguas negras da depressao que me cercam. Aas vezes intercalo a leitura com o estudo de um livro espirita -- ainda que na maioria das ocasioes as oracoes que faco sejam espontaneas e nao sigam nenhum tipo especifico de cartilha.


Apesar dos joelhos de borracha, que sustentam so parcialmente o peso do corpo, ainda nao encontrei forcas em minha alma para verdadeiramente me prostrar de joelhos e suplicar. Acho que nao sei ao certo pelo que pedir -- por ele, eh claro. Saude eh fisicamente inviavel. Conforto? Ou uma morte rapida? A cada segundo o peso que me puxa para baixo parece maior, esmagando-me como uma pluma marcando a ultima pagina de um dicionario.


Gracas aa exorbitante bondade de minhas colegas de trabalho, assim que as coisas se mostraram serias fui imediatamemte colocada de ferias, aliviando ao menos a obrigacao de procurar algum sentido na rotina pouco edificante e certamente insignificante de assessora de imprensa.


Mas ha muitos dias nao tenho mais lagrimas, so uma dor surda e entorpecedora que ao mesmo tempo me distancia das pessoas ao redor e me torna estranhamente irritada com sua existencia -- como eles podem sorrir enquanto ha tanta dor acontecendo? Como o mundo pode continuar girando enquanto a razao de minha existencia jaz em um leito de hospital, semi inerte atras das portas brancas, decaindo visivelmente a cada dia?


Entre a depressao e a compulsao, houve ainda o desejo da morte. Se era este o caminho mais curto para o reencontro, porque nao optar por seguir meu pai no segundo em que ele partisse? Num momento de loucura, achei ter descoberto nessa opcao a resposta para nunca ter me deixado levar pela questao filhos. Aos quase trinta anos, minha existencia se resume a um trabalho mais estressante que gratificante, pai, mae, dois irmaos e um marido que tem assistido, impotente, minha rapida deterioracao a um estado de zumbi; com muito a fazer na pratica -- cuidar de todos os hiatos do dia a dia que venho negligenciando, como supermercado, faxina, louca, lavanderia -- mas pouco ou nenhum controle sobre meu estado sombrio de espirito. Sim, poucos danos seriam deixados para tras. Mas meu pai nao quereria isso, o que faz de meu futuro um descomunal ponto de interrogacao.


Por enquanto, me acomodo com os fones do iPod enterrados nos ouvidos, precariamente empoleirada em uma maca coberta por um colchao azul, esperando mais uma vez a abertura das portas brancas para o terceiro e ultimo turno de visitas do dia. Tento disfarcar as maos tremulas apertando uma na outra aa frente do corpo, mais uma vez me perguntando se as lagrimas de fato secaram para sempre.


E a ultima frase da musica chama minha atencao como uma chicotada:


"Cause everything, everything ends..."

Um comentário:

BETA FERNANDES disse...

Amiga, deixa eu te contar uma coisa? eu sei muito bem o andas sentindo. Sou capaz de fechar os olhos e narrar toda a cena que passei quando meu irmão se foi repentina e precocemente. Se parar direitinho consigo sentir até o cheiro forte daquele dia ...
valeimeeeedeus :-(
Mas desse mesmo jeito é que nunca vou esquecer sua presença quando segurei pela primeira vez a miha filha nos braços e você estava lá ao meu lado... Quanta alegria sem tamanho, quanto amor, quanta emoção...

E deixa eu te falar? É assim a vida, Amiga, a gente se recorda sempre de todos os detalhes do que é bom e é ruim. E que bom que é assim, né não????...

Tenho rezado todas as horas que lembro, por você, por seu pai e sua familia. Pedindo com simplicidade que Deus te conforte hoje e sempre. E na minha humilde condicoes que "colega de trabalho" e acima de tudo AMIGA por toda vida te oferecei sempre meu ombro amigo para chorar sempre que necessário.

Faça sempre aquilo que te falei tente acordar TODOS os dias em nome do amor dos filhos que tenho certeza um dia você terá.

Fica com deus, Flor