16 de dezembro de 2009

O céu ganhou uma nova estrela


Só existiam duas explicações para o que estava acontecendo. E uma delas envolvia uma dose massiva de ironia por parte das forças divinas -- então, para não blasfemar, preferi considerar apenas a seguda opção.

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À beira dos trinta anos, descobri ter uma resposta pronta, imediata -- e sincera -- para a clássica pergunta "qual seu maior medo?". Estupidamente, se trata de um fato do qual é simplesmente impossível fugir: a morte dos meus pais. Tendo isso em mente, só era possível admitir que fazia parte da minha missão neste mundo adentrar três vezes ao dia uma asséptica sala de UTI para dar de cara com o corpo inerte do meu pai -- a esta altura totalmente sedado, ligado a meia dúzia de tubos de soro e a uma máquina pavorosa que empurrava com força brutal o ar para dentro do que restava de seus pulmões.

Depois dele ter implorado, eu um dos últimos atos de consciência, para que eu o levasse para dormir em minha casa porque "sabia que estava chegando ao fim", seria de se esperar que encarar a inconsciência fosse uma tarefa um pouco menos dolorida. Mas vê-lo naquela forma de semi-cadáver tirou de mim em um único golpe qualquer resquício de força que pudesse restar em meu corpo. Na altura da última visita da noite, meu cérebro gritava histericamente para que as pernas dessem meia-volta e se afastassem dali o mais rápido possível. Mas aí uma vozinha falou no fundo da minha cabeça: "E se ESSE for o desafio da sua vida?"

De repente as coisas pareceram fazer mais sentido. Se estamos neste planeta por algum motivo, acredito piamente que ele seja CRESCER. Melhorar. Avançar. Como diz aquela música, em algum momento da vida o ser humano precisa aprender: "reconhece a queda e não desanima. Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima". Meu pai, mesmo dormindo profundamente, precisava de mim. E eu não podia desistir só porque estar com ele naquela momento era a concretização dos meus mais selvagens e dolorosos pesadelos, podia? Afinal de contas, durante toda a vida ele escalou montanhas por mim. Abriu oceanos. Parou tempestades. Como eu poderia deixar o medo me afastar?

Respirei fundo. Uma vez. Duas. Três.

Adentrei a sala e me concentrei em aproveitar meu quinhão de 15 minutos para dizer suavemente em seu ouvido, enquanto segurava sua mão, o quanto ele tinha sido maravilhoso. Como ele foi perfeito em todas as horas da vida, e tinha transformado três bebezinhos -- meus irmãos e eu -- em cidadãos honestos, justos, instruídos. Acima de tudo, falei do quanto ele foi, é e sempre será amado. Que seu coração e o meu nunca iriam se separar; porque enquanto eu existisse, uma parte dele estaria sempre viva; que Deus tinha me abençoado por ter sido a menininha do papai -- e graças a isso nunca perdi uma oportunidade de mostrar o quanto ele era vital para minha existência (e sanidade).

Também fiz questão de dizer que ele estava livre para seguir seu caminho. Que se libertasse deste corpo incômodo, não se prendendo ao que ficou, e fosse alegremente para o lado dos entes queridos que já nos deixaram. Aqui, a gente daria conta do recado -- afinal de contas, fomos educados pelos melhores pais que o mundo poderia conceber.

Quando a enfermeira informou que a visita estava encerrada, beijei sua mão e sua cabeça, como sempre fiz a vida toda, e saí da sala com uma estranha sensação de alívio.

Eu não sabia que aquela seria a última vez que veria seu coração batendo.

Meu melhor amigo, meu protetor, meu conselheiro, meu mecânico, motorista e encanador, meu exemplo de vida, nos deixou hoje às 7h15 da manhã. Nesta exata hora, acordei de repente de um sono agitado e senti uma brisa de conforto e alívio passando por mim. Tenho certeza que era ele, minha alma gêmea, passando para se despedir. Não senti medo nem dor - só um grande vazio que mais tarde, suponho, será preenchido com uma enorme saudade. Mas no fundo de minha alma, tenho certeza de uma coisa: ele me perdoou por não tê-lo levado para dormir em minha casa naquele dia.

Agora, como diz meu sobrinho de quatro anos, o céu ganhou mais uma estrela. E é com a sabedoria irrepreensível de Adriana Partimpim que deixo esta homenagem a meu grande herói: JAIRO DE OLIVEIRA ANDRADE.





Saiba

Saiba: todo mundo foi neném
Einstein, Freud e Platão também
Hitler, Bush e Saddam Hussein
Quem tem grana e quem não tem

Saiba: todo mundo teve infância
Maomé já foi criança
Arquimedes, Buda, Galileu
e também você e eu

Saiba: todo mundo teve medo
Mesmo que seja segredo
Nietzsche e Simone de Beauvoir
Fernandinho Beira-Mar

Saiba: todo mundo vai morrer
Presidente, general ou rei
Anglo-saxão ou muçulmano
Todo e qualquer ser humano

Saiba: todo mundo teve pai
Quem já foi e quem ainda vai
Lao-Tsé, Moisés, Ramsés, Pelé
Gandhi, Mike Tyson, Salomé

Saiba: todo mundo teve mãe
Índios, africanos e alemães
Nero, Che Guevara, Pinochet
e também eu e você...


Te amo, pai. A gente se vê.

Um comentário:

Bruna Cruz disse...

Pode até demorar um tempo para isso acontecer, mas pode TER CERTEZA: vc vai revê-lo e senti-lo como sempre sentiu. Deus é tão bom que, a partir do momento que a gente passa a compreender um pouco como funciona a natureza da sua sabedoria, ele nos concede essa graça. E você, minha irmã, apesar da perda e das saudades, deu um grande passo para encurtar esse espaço temporal. Sinto ainda mais orgulho de você nesse momento.